O direito de ser deixado em paz
Responsável por uniformizar a interpretação
da lei federal seguindo os princípios constitucionais e a defesa do
Estado de Direito, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
está sempre aberto à discussão dos temas mais relevantes para a
sociedade brasileira. Este ano, o Tribunal da Cidadania trouxe à tona o
debate sobre o chamado direito ao esquecimento.
O direito ao
esquecimento não é um tema novo na doutrina jurídica, mas entrou em
pauta com mais contundência desde a edição do Enunciado 531 da VI
Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal
(CJF). O texto, uma orientação doutrinária baseada na interpretação do
Código Civil, elenca o direito de ser esquecido entre os direitos da
personalidade.
Ao estabelecer que “a tutela da dignidade da
pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao
esquecimento”, o Enunciado 531 estabelece que o direito de não ser
lembrado eternamente pelo equívoco pretérito ou por situações
constrangedoras ou vexatórias é uma forma de proteger a dignidade
humana.
A tese de que ninguém é obrigado a conviver para sempre
com erros do passado foi assegurada pela Quarta Turma do STJ no
julgamento de dois recursos especiais movidos contra reportagens
exibidas em programa de televisão.
Chacina da Candelária
No
primeiro caso (REsp 1.334.097), a Turma reconheceu o direito ao
esquecimento para um homem inocentado da acusação de envolvimento na
chacina da Candelária e posteriormente retratado pelo programa Linha
Direta, da TV Globo, anos depois de absolvido de todas as acusações.
Nesse
acaso, a Turma concluiu que houve violação do direito ao esquecimento e
manteve sentença da Justiça fluminense que condenou a emissora ao
pagamento de indenização no valor R$ 50 mil.
O homem foi
apontado como coautor da chacina da Candelária, sequência de homicídios
ocorridos em 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro, mas foi absolvido
por unanimidade. No recurso, ele sustentou que recusou pedido de
entrevista feito pela TV Globo, mas mesmo assim o programa veiculado em
junho de 2006 citou-o como um dos envolvidos na chacina, posteriormente
absolvido.
Ele ingressou na Justiça com pedido de indenização,
sustentando que sua citação no programa levou a público, em rede
nacional, situação que já havia superado, reacendendo na comunidade onde
reside a imagem de chacinador e o ódio social, e ferindo seu direito à
paz, anonimato e privacidade pessoal. Alegou, ainda, que foi obrigado a
abandonar a comunidade para preservar sua segurança e a de seus
familiares.
Acompanhando o voto do relator, ministro Luis Felipe
Salomão, a Turma concluiu que a ocultação do nome e da fisionomia do
autor da ação não macularia sua honra nem afetaria a liberdade de
imprensa.
A Turma entendeu que o réu condenado ou absolvido pela
prática de um crime tem o direito de ser esquecido, pois se os
condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de
antecedentes e à exclusão dos registros da condenação no instituto de
identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram
absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o
mesmo direito de serem esquecidos.
Para os ministros da Quarta
Turma, a fatídica história poderia ter sido contada de forma fidedigna
sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em
rede nacional, até porque, certamente, ele não teve reforçada sua
imagem de inocentado, mas sim a de indiciado.
Caso Aída Curi
No
segundo caso (REsp 1.335.153), a mesma Quarta turma negou direito de
indenização aos familiares de Aída Curi, que foi abusada sexualmente e
morta em 1958 no Rio de Janeiro. A história desse crime, um dos mais
famosos do noticiário policial brasileiro, foi apresentada no programa
Linha Direta com a divulgação do nome da vítima e de fotos reais, o que,
segundo seus familiares, trouxe a lembrança do crime e todo sofrimento
que o envolve.
Os irmãos da vítima moveram ação contra a
emissora com o objetivo de receber indenização por danos morais,
materiais e à imagem. Por maioria de votos, o STJ entendeu que, nesse
caso, o crime era indissociável do nome da vítima. Isto é, não era
possível que a emissora retratasse essa história omitindo o nome da
vítima, a exemplo do que ocorre com os crimes envolvendo Dorothy Stang e
Vladimir Herzog.
Segundo os autos, a reportagem só mostrou
imagens originais de Aída uma vez, usando sempre de dramatizações, uma
vez que o foco da reportagem foi no crime e não na vítima. Assim, a
Turma decidiu que a divulgação da foto da vítima, mesmo sem
consentimento da família, não configurou abalo moral indenizável.
Nesse
caso, mesmo reconhecendo que a reportagem trouxe de volta antigos
sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu
quase 60 anos atrás, a Turma entendeu que o tempo, que se encarregou de
tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho de abrandar seus
efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares.
O voto
condutor também destacou que um crime, como qualquer fato social, pode
entrar para os arquivos da história de uma sociedade para futuras
análises sobre como ela – e o próprio ser humano – evolui ou regride,
especialmente no que diz respeito aos valores éticos e humanitários.
Esquecimento na internet
O
surgimento do direito ao esquecimento, como um direito personalíssimo a
ser protegido, teve origem na esfera criminal, mas atualmente tem sido
estendido a outras áreas, como, por exemplo, nas novas tecnologias de
informação. Ele em sido abordado na defesa dos cidadãos diante de
invasões de privacidade pelas mídias sociais, blogs, provedores de
conteúdo ou buscadores de informações.
O instituto vem ganhando
contornos mais fortes em razão da facilidade de circulação e de
manutenção de informação pela internet, capaz de proporcionar
superexposição de boatos, fatos e notícias a qualquer momento, mesmo que
decorrido muito tempo desde os atos que lhes deram origem.
Para
a ministra Eliana Calmon, do STJ, isso acontece porque as decisões
judiciais são baseadas na análise do caso concreto e no princípio de que
a Justiça dever estar sempre em sintonia com as exigências da sociedade
atual. “O homem do século 21 tem como um dos maiores problemas a quebra
da sua privacidade. Hoje é difícil nós termos privacidade, porque a
sociedade moderna nos impõe uma vigilância constante. Isso faz parte da
vida moderna”, afirma.
Autor do Enunciado 531, o promotor de
Justiça do Rio de Janeiro Guilherme Magalhães Martins explica que o
direito ao esquecimento não se sobrepõe ao direito à liberdade de
informação e de manifestação de pensamento, mas ressalta que há limites
para essas prerrogativas.
"É necessário que haja uma grave
ofensa à dignidade da pessoa humana, que a pessoa seja exposta de
maneira ofensiva. Porque existem publicações que obtêm lucro em função
da tragédia alheia, da desgraça alheia ou da exposição alheia. E existe
sempre um limite que deve ser observado”, diz ele.
Martins
ressalta que, da mesma forma que a liberdade de expressão não é
absoluta, o direito ao esquecimento também não é um direito absoluto:
“Muito pelo contrário, ele é excepcional.”
O promotor ainda
esclarece que, apesar de não ter força normativa, o Enunciado 531 remete
a uma interpretação do Código Civil referente aos direitos da
personalidade, ao afirmar que as pessoas têm o direito de ser esquecidas
pela opinião pública e pela imprensa.
Sem reescrever a história
Uma
foto tirada em momento de intimidade pode se propagar por meio das
mídias sociais com impensada rapidez. Fatos praticados na juventude, e
até já esquecidos, podem ser resgatados e inseridos na rede, vindo a
causar novos danos atuais, e até mais ruinosos, além daqueles já
causados em época pretérita. Quem pretende ir à Justiça com a intenção
de apagar essas marcas negativas do passado pode invocar o direito ao
esquecimento.
O desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região Rogério Fialho Moreira, que coordenou a Comissão de Trabalho da
Parte Geral na VI Jornada, explica que o enunciado garante apenas a
possibilidade de discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos nos
meios de comunicação social, sobretudo nos meios eletrônicos. De acordo
com ele, na fundamentação do enunciado ficou claro que o direito ao
esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos passados ou
reescrever a própria história.
“Não é qualquer informação
negativa que será eliminada do mundo virtual. É apenas uma garantia
contra o que a doutrina tem chamado de superinformacionismo. O enunciado
contribui, e muito, para a discussão do tema, mas ainda há muito espaço
para o amadurecimento do assunto, de modo a serem fixados os parâmetros
para que seja acolhido o esquecimento de determinado fato, com a
decretação judicial da sua eliminação das mídias eletrônicas”, diz o
magistrado.
Parâmetros que serão fixados e orientados pela
ponderação de valores, de modo razoável e proporcional, entre os
direitos fundamentais e as regras do Código Civil sobre proteção à
intimidade e à imagem, de um lado, e, de outro, as regras
constitucionais de vedação à censura e da garantia à livre manifestação
do pensamento.
De acordo com o magistrado, na sociedade de
informação atual, até mesmo os atos mais simples e cotidianos da vida
pessoal podem ser divulgados em escala global, em velocidade
impressionante.
“Verifica-se hoje que os danos causados por
informações falsas, ou mesmo verdadeiras, mas da esfera da vida privada e
da intimidade, veiculadas através da internet, são potencialmente muito
mais nefastos do que na época em que a propagação da notícia se dava
pelos meios tradicionais de divulgação. Uma retratação publicada em
jornal podia não ter a força de recolher as ’penas lançadas ao vento’,
mas a resposta era publicada e a notícia mentirosa ou injuriosa
permanecia nos arquivos do periódico. Com mais raridade era ressuscitada
para voltar a perseguir a vítima”, esclarece.
O enunciado,
segundo o magistrado, ajudará a definir as decisões judiciais acerca do
artigo 11 do Código Civil, que regulamenta quais direitos de
personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, assim como do
artigo 5º da Constituição Federal, como o direito inerente à pessoa e à
sua dignidade, entre eles a vida, a honra, a imagem, o nome e a
intimidade.
Right to be let alone
No
entendimento do desembargador, a teoria do direito ao esquecimento
surgiu exatamente a partir da ideia de que, mesmo quem comete um crime,
depois de determinado tempo, vê apagadas todas as consequências penais
do seu ato. No Brasil, dois anos após o cumprimento da pena ou da
extinção da punibilidade por qualquer motivo, o autor do delito tem
direito à reabilitação. Depois de cinco anos, afasta-se a possibilidade
de considerar-se o fato para fins de reincidência, apagando-o de todos
os registros criminais e processuais públicos.
Ainda segundo
ele, o registro do fato é mantido apenas para fins de antecedentes, caso
cometa novo crime e, mesmo assim, a matéria encontra-se no Supremo
Tribunal Federal (STF), para decisão sobre a constitucionalidade dessa
manutenção indefinida no tempo.
Mas, extinta a punibilidade, a
certidão criminal solicitada sai negativa, inclusive sem qualquer
referência ao crime ou ao cumprimento de pena. "Ora", conclui Moreira,
"se assim é até mesmo em relação a quem é condenado criminalmente, não
parece justo que os atos da vida privada, uma vez divulgados, possam
permanecer indefinidamente nos meios de informação virtuais. Essa é a
origem da teoria do direito ao esquecimento, consagradora do right to be let alone, ou seja, do direito a permanecer sozinho, esquecido, deixado em paz."