O INSTITUTO DA DECADÊNCIA E OS ATOS
INDEFERITÓRIOS DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS: Princípio da Segurança Jurídica x
Garantias Fundamentais
*Por Joeslany Melo
Sob
a égide de uma Constituição Cidadã e caracterizada por sua rigidez, a
legislação brasileira encontra limites para a proteção de algumas matérias,
quais sejam a forma federativa do Estado, o voto secreto, universal e
periódico, a tripartição dos Poderes e os Direitos e Garantias Individuais.
Os
direitos sociais, nos quais estão inseridas à Previdência e à Assistência
Social – objetos do presente artigo, encontram-se elencados no artigo 6º da Lei
Maior, inserindo-se nos direitos e garantias individuais e, consequentemente,
possuindo maior rigor na sua proteção.
Para
a interpretação e aplicação da Constituição Federal, faz-se necessária a
existência de normais infraconstitucionais que regulamentem a matéria, dando
diretrizes para assegurar os direitos Maiores sem jamais contrariá-los.
Em
matéria previdenciária, essa regulamentação se dá por meio de leis, decretos, súmulas
e entendimentos jurisprudenciais construídos na TNU, STJ e no próprio STF,
porém sempre sob o crivo constitucional.
Nesse
norte, importa ressaltar um entendimento que foi construído em torno do
instituto da decadência a partir da má interpretação dada a MP 1523/97,
convertida na Lei 9.528/97, que alterou o art. 103 da Lei 8.213/91 que hoje
está assim redigido:
“Art. 103. É
de dez anos o prazo de decadência de todo e qualquer direito ou ação do
segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício, a
contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação
ou, quando for o caso, do dia em que tomar conhecimento da decisão
indeferitória definitiva no âmbito administrativo.” (Redação
dada pela Lei nº 10.839, de 2004)
Com
texto ambíguo, por muito tempo, esse dispositivo motivou uma forte discussão
jurídica: uns entendiam que o prazo decadencial de dez anos se aplicava para a
revisão de benefícios deferidos e indeferidos, outros, que se aplicavam apenas
aos benefícios concedidos, tudo em razão da interpretação dada a expressão “do dia em que tomar conhecimento da decisão
indeferitória definitiva no âmbito administrativo”.
Os
defensores da primeira corrente acreditam que a referida expressão refere-se ao
indeferimento do benefício, o que permitiria que o instituto da decadência
incidisse sobre os benefícios concedidos e indeferidos, garantindo assim o
princípio constitucionalmente previsto da segurança jurídica. Com fulcro no
brocardo jurídico que diz “dormientibus non sucurrit jus” (o direito não socorre aquele que dorme),
aduzem que a existência de um lapso temporal para o exercício do direito é uma
maneira de disciplinar a conduta social, agindo o tempo como vetor de
estabilidade das relações jurídicas o que marca a prevalência da segurança
jurídica sobre a justiça.
Nesse
mesmo norte, a Turma Nacional de Uniformização publicou, em 23.08.2012, a
seguinte súmula:
Súm. 64. O direito à
revisão do ato de indeferimento de benefício previdenciário ou assistencial
sujeita-se ao prazo decadencial de dez anos.
Já os patronos da segunda tese acreditam que a
expressão refere-se ao indeferimento do pedido de revisão de um benefício já
concedido, pois entendem que não há que se falar em aplicação da decadência
sobre direitos fundamentais constitucionalmente previstos como são os direitos
sociais.
Diante
da acirrada discussão, a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal que, através
do julgamento do RE 626.489, interposto pelo INSS, reconheceu a repercussão
geral da matéria e entendeu pela prevalência dos direitos fundamentais sobre o
princípio da segurança jurídica.
Partindo
da premissa de que o direito à previdência e assistência social são garantias
fundamentais previstas na Constituição Federal de 1988, pois, conforme destacou
o ministro Luiz Roberto Barroso, relator do processo, “se assenta nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
solidariedade e nos valores sociais do trabalho, bem como nos objetivos da
República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, avançar na
erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais”, o prazo
decadencial introduzido pela Lei 9.528/97 atinge tão somente a pretensão de
revisar o benefício já concedido.
Vejamos
trecho da ementa do voto do Ministro Barroso no RE 626.489/SE:
1. O direito à previdência
social constitui direito fundamental e, uma vez implementados os pressupostos
de sua aquisição, não deve ser afetado pelo decurso do tempo. Como
consequência, inexiste prazo decadencial para a concessão inicial do
benefício previdenciário. 2. É legítima, todavia, a instituição de prazo
decadencial de dez anos para a revisão de benefício já concedido, com
fundamento no princípio da segurança jurídica, no interesse em evitar a
eternização dos litígios e na busca de equilíbrio financeiro e atuarial para o
sistema previdenciário.
Assim,
pela própria natureza do direito previdenciário, temos que, preenchidos os
requisitos autorizadores da concessão de um benefício, o mesmo pode ser
concedido a qualquer tempo, independente de quando foi o indeferimento
administrativo, haja vista a inexistência de prazo para o exercício de direito
fundamental.
Nesse
sentir, vejamos trecho do julgado do TRF da 4ª Região que aplicou o recente
entendimento esposado pelo STF:
A
decadência previdenciária, ao contrário do que ocorre com a prescrição, atinge
o próprio 'fundo de direito', isto é, uma vez decorrido o prazo legalmente
previsto impede o próprio reconhecimento do direito, vedando assim também
qualquer produção de efeitos financeiros. 2. Todavia, é preciso que se frise
que seu objeto, até mesmo em face dos princípios da hipossuficiência e da
protetividade dos segurados, é bastante limitado, atingindo exclusivamente a
revisão do ato de concessão de benefício. 3. Não há decadência do direito ao
benefício, ou seja, do direito à revisão do ato administrativo de indeferimento
do benefício, já que o dispositivo legal determina a sua incidência quando em
discussão revisão de ato concessório, isto é, benefício já em manutenção. 4. O
segurado pode, a qualquer tempo, requerer, judicial ou administrativamente,
benefício cujo direito tenha sido adquirido há bem mais de 10 anos e tenha sido
indeferido na via administrativa. 5.
Cuidando-se de prestações de natureza continuada apenas as cotas devidas no
quinquênio anterior à propositura da ação é que são alcançadas pela prescrição.
Súmula n.º 85 do STJ.
(TRF-4
- APELREEX: 225912620134049999 PR 0022591-26.2013.404.9999, Relator: JOÃO
BATISTA PINTO SILVEIRA, Data de Julgamento: 02/04/2014, SEXTA TURMA, Data de
Publicação: D.E. 11/04/2014)
Sendo
assim, não há que se falar em decadência do direito de pleitear, mas, somente,
na prescrição das prestações anteriores a cinco anos do ajuizamento da ação,
conforme disposto na súmula 85 do STJ.
No
entanto, em respeito ao princípio da segurança jurídica e à manutenção do
equilíbrio atuarial e financeiro do Regime Geral de Previdência Social, faz-se
necessário a fixação de um prazo decadencial que deve ser aplicado para limitar
a discussão sobre a repercussão econômica de benefício já concedido, pois como
sustentou o ministro “é desse equilíbrio
que depende a continuidade da própria Previdência, não apenas para a geração
atual, mas para as que se seguirão”.
Desta
feita, há ainda de se observar que, diante da manifestação da Suprema Corte e
da supremacia da norma constitucional, alguns posicionamentos deverão ser
revistos, inclusive a retrocitada súmula da TNU que determina a aplicação de
prazo decadencial nos casos de indeferimento de benefícios previdenciários e
assistenciais.
O
entendimento da Turma Nacional de Uniformização encontra-se ultrapassado e
contradiz o posicionamento da Suprema Corte, o que pode e deve ensejar o
cancelamento da referida súmula, sob a pena da sua aplicação ferir entendimento
superior na hierarquia das normas.
Sendo
assim, por tudo o que foi exposto, resta claro que, no que tange aos atos de
indeferimento de benefícios previdenciários, a decadência é instituto que não
deve ser aplicado, haja vista do direito à previdência e assistência social,
elevado à Carta Magna à condição de direito fundamental, não se submete a
limites temporais, podendo ser requerido a qualquer tempo, eis que se constitui
no exercício de direito fundamental.
*Joeslany Melo é advogada MARCOS INÁCIO ADVOCACIA.