segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O SEGURADO ESPECIAL DO SÉCULO XXI



Neste primeiro século do terceiro milênio, o mundo vem experimentando grandes transformações, sobretudo em razão do aprofundamento da globalização da economia e da revolução digital que, embora esta tenha sido iniciada no final do século XX, sua popularização e seus efeitos inegavelmente foram intensificados neste início de milênio.

            Na verdade, trata-se de uma grande revolução da informação: todos tem acesso, quase que em tempo real, a tudo que acontece no mundo, seja através de um smartphone seja num computador caseiro ou numa lan house. Essa revolução não atingiu apenas as grandes cidades, os grandes centros urbanos: ela chegou, também, na zona rural. 

            Emparelhada a essa revolução de informação, verifica-se aqui no Brasil uma consequente melhora da qualidade de vida da população mais pobre, em razão de diversos fatores: aumento da rede de educação e diminuição do analfabetismo, controle da inflação, aumento do ganho real de compra do salário mínimo (pelo menos oficialmente...), ampliação dos programas assistenciais de distribuição de renda, etc.

            Essa visível melhora na qualidade de vida atingiu sensivelmente o segurado especial: que é aquele agricultor ou pescador, que tira o sustento próprio e de sua família através do trabalho em regime de economia familiar, onde o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, exercido sem a ajuda de empregados (permitido apenas os eventuais e por um determinado período), conforme dispõe o art. 11, inciso VII e §1º da Lei 8.213/91. 

Segundo o IBGE, no Censo Agropecuário de 2006 foram identificados 4.366.267 estabelecimentos da agricultura familiar, o que representa 84,36% dos estabelecimentos brasileiros. Este numeroso contingente de agricultores familiares ocupava uma área de 80,10 milhões de hectares, ou seja, 24% da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Estes resultados mostram uma estrutura agrária ainda concentrada no país: os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem 15,6% do total dos estabelecimentos, ocupavam 75,9% da área ocupada. A área média dos estabelecimentos familiares era de 18,34 ha, e a dos não familiares, de 313,3 ha. Apesar de cultivar uma área menor com lavouras e pastagens (17,6 e 36,2 milhões de hectares, respectivamente), a agricultura familiar é responsável por garantir boa parte da segurança alimentar do país, como importante fornecedora de alimentos para o mercado interno. (disponível.em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/agri_familiar_2006_2/default.shtm).

            Ainda segundo o mesmo estudo do IBGE, 69% dos agricultores familiares declararam ter obtido rendimentos com a terra no ano de 2006, o que representa 3 milhões de agricultores, que obtiveram uma receita média de R$ 14 mil, com a venda de produtos vegetais, venda de animais e produtos da agroindústria, o que equivalia, à época, pouco mais de três salários mínimos por mês. Merece registro, ainda, que mais de R$ 5,5 bilhões chegaram aos produtores familiares por meio de aposentadorias, pensões e programas especiais dos governos em 2006.

            Os reflexos das melhorias das condições de vida já podem ser vistos e sentidos também na zona rural, em especial junto aos agricultores e pescadores, segurados especiais. Não se concebe mais a ideia da imagem caricata de que o agricultor ou o pescador deva ser uma pessoa necessariamente de má aparência, com as vestes rasgadas, chapéu de palha na cabeça e um cigarro pé-de-burro pendurado nos lábios.

            A chegada do desenvolvimento na zona rural, com a melhoria dos acessos e transportes, com a chegada de escolas, com industrialização da agricultura, com o turismo rural e a geração de renda decorrente da atividade rural, transformou a realidade do agricultor, que passou a ter condições de, por exemplo, possuir um automóvel popular, uma motocicleta – em substituição ao cavalo e à carroça de tração animal – de adquirir eletrodomésticos, de consumir produtos de beleza, de ter um computador conectado à internet em sua residência, de ter um filho matriculado numa universidade, etc., sem que essas situações sejam interpretadas como excludentes da condição de segurado especial.

            Na práxis forense, é comum notar uma espécie de “pré-conceito” por parte dos aplicadores da Lei. Em especial no que pertine à aparência pessoal, o modo de se portar e o linguajar que, em muitos casos, possui papel fundamental no destino de muitos processos, já que aspecto físico é utilizado tanto para reconhecer a condição de agricultor, como para negá-lo. Como exemplo, vejamos decisão recente da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais:

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE. SEGURADA ESPECIAL. EXISTÊNCIA DE DOIS FUNDAMENTOS APTOS A ANCORAR O JULGAMENTO DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DE UM DELES, OU DE DEMONSTRAÇÃO DE DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL A ELE RELATIVA. APLICAÇÃO DA QUESTÃO DE ORDEM N.º 18. NÃO CONHECIMENTO DO INCIDENTE. 1. Pretende a autora o reconhecimento de seu direito à obtenção de aposentadoria rural por idade, insistindo na idoneidade do início de prova material colacionado aos autos, bem como na tese de que a percepção de benefício de natureza urbana pelo seu marido não descaracteriza a sua condição de segurada especial. 2. Ocorre que o julgado recorrido confirma sentença de improcedência por seus próprios fundamentos, ancorados não apenas na inaptidão do início de prova material para comprovação do labor rural exigível ou na descaracterização da qualidade de segurada especial pela percepção de benefício de natureza urbana pelo marido, mas também na ausência de características físicas de rurícola da autora, apurada em audiência. Nesse sentido, o magistrado sentenciante consignou que: “O contato pessoal foi péssimo em relação à autora, já que ela não possui mãos calejadas, pele queimada pelo sol ou mesmo aparência física própria de um agricultor. Logo, irrelevante se afigura a pretensão de reconhecimento da aptidão do início de prova material para comprovação da condição de rurícola ou de exame da imprescindibilidade do labor rural, pois a circunstância, por si só, não seria suficiente a garantir a reversão do julgado. Lembro que nos termos da Questão de Ordem n.º 18 deste Colegiado, não se conhece de incidente de uniformização que aborda apenas um dos fundamentos que ancora o acórdão recorrido, quando inatacados outros com aptidão para confirmá-lo. 3. De qualquer forma, eventual provimento do recurso manejado implicaria o revolvimento de matéria fático-probatória, o que é defeso nesta instância, a teor da Súmula nº 42 desta Turma Nacional. 4. Pedido de Uniformização de Jurisprudência não conhecido. 
(TNU - PEDILEF 05070798820074058200. DOU 31/03/2012).

            É evidente constatar que de fato, muitas vezes, o agricultor – em especial o que vive no semiárido nordestino – exibe uma aparência extremamente humilde, com mãos calejadas, roupas rasgadas e pele castigada pelo sol. Contudo, não podemos perder de vista que existem, sim, alguns bolsões de fartura, onde há agua, terra produtiva e uma produção razoável, que permite a comercialização e o sustento digno da família, capaz de permitir ao agricultor ter uma condição de vida razoável, sem que isso o descaracterize como segurado especial.  

            Não se pode negar o direito à percepção de um benefício a uma agricultora, por exemplo, a despeito de possuir farta documentação comprobatória de segurada especial, compareça a uma audiência no Fórum trajada com uma roupa um pouco melhor, usando batom e maquiagem, brincos e bijuterias, ou mesmo cabelos pintados, sem que isso possa desqualificá-la como agricultora.       

O próprio Governo Federal, por exemplo, exige dos pescadores artesanais que se utilize da internet para a renovação do seu Registro Geral de Pesca (RGP), cujo procedimento deve dar-se exclusivamente pela rede mundial de computadores, através da página do Ministério da Pesca (www.mpa.gov.br), sob pena de cancelamento de seu registro e consequente proibição da atividade.

            De acordo com a Lei 8.213/91 o segurado especial pode: i) explorar atividade turística, inclusive com hospedagem, por período não superior a 120 dias por ano; ii) participar de plano de previdência complementar instituído por entidade classista a que seja associado, em razão da condição de trabalhador rural ou de produtor rural em regime de economia familiar; iii) ser beneficiário ou fazer parte de grupo familiar que tem algum componente que seja beneficiário de programa assistencial oficial de governo; iv) utilizar-se de processo de beneficiamento ou industrialização artesanal; v) associar-se a cooperativa agropecuária.

Por outro lado, o segurado especial não pode: i) ter outra fonte de rendimento; ii) enquadrar-se em qualquer outra categoria de segurado obrigatório do RGPS; iii) tornar-se segurado obrigatório de outro regime previdenciário; iv) participar de sociedade empresária, de sociedade simples, como empresário individual ou como titular de empresa individual de responsabilidade limitada, exceto se for de objeto ou âmbito agrícola, agroindustrial ou agroturístico, considerada microempresa nos termos da Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006.

            Abrindo um parêntese no que concerne às outras fontes de rendas permitidas ao segurado especial, excepciona a mesma Lei 8.213/91: i) benefício de pensão por morte, auxílio-acidente ou auxílio-reclusão, cujo valor não supere o do menor benefício de prestação continuada da Previdência Social; ii) benefício previdenciário pela participação em plano de previdência complementar; iii) exercício de atividade remunerada em período não superior a 120 (cento e vinte) dias, corridos ou intercalados, no ano civil; iv) exercício de mandato eletivo de dirigente sindical de organização da categoria de trabalhadores rurais; v) exercício de mandato de vereador do município onde desenvolve a atividade rural, ou de dirigente de cooperativa rural constituída exclusivamente por segurados especiais; vi) parceria ou meação de até 50% dos quatro módulos rurais, para exercer a atividade rural; vii) atividade artesanal desenvolvida com matéria-prima produzida pelo respectivo grupo familiar, podendo ser utilizada matéria-prima de outra origem, desde que a renda mensal obtida na atividade não exceda ao menor benefício de prestação continuada da Previdência Social; viii) atividade artística, desde que em valor mensal inferior ao menor benefício de prestação continuada da Previdência Social.

            A legislação de regência oferece alguns parâmetros que, apesar de objetivos, não são rígidos, podendo ser mitigados em, cada caso concreto. Tome-se como exemplo a exigência quanto ao tamanho da propriedade, onde a lei exige que não seja maior do que 4 (quatro) módulos rurais. Porém, a jurisprudência vem admitindo exceções, a exemplo da Súmula nº. 30 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais: “Tratando-se de demanda previdenciária, o fato de o imóvel ser superior ao módulo rural não afasta, por si só, a qualificação de seu proprietário como segurado especial, desde que comprovada, nos autos, a sua exploração em regime de economia familiar”.

            O segurado especial do século XXI, portanto, possui carro, moto e acesso à internet; explora o turismo rural, vende artesanato, pode ter uma previdência privada, ser vereador de seu município, usar batom, pintar os cabelos, auferir uma renda satisfatória e nem por isso deixará de ser agricultor. É preciso que os aplicadores da Lei promovam uma mudança de pensamento nesse sentido, soltando as amarras do “pré-conceito” de que o agricultor necessariamente deva ser necessariamente caricato, pobre e miserável. 

*por Nelson Tôrres

3 comentários:

  1. O fato de um segurado especial ter laborado por período superior a 120 como empregado rural (com registro em CTPS) retira-lhe o direito de requerer aposentadoria por idade rural ou não?

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    1. A Lei 8.213/91 e o Decreto 3.048/99 consideram que o segurado especial não perde a qualidade de segurado se exercer atividade remunerada, inclusive com registro em CTPS, em período não superior a 4 meses ou 120 dias durante um ano. Essa é a regra e, portanto, o exercício da atividade como empregado rural por mais de 120 dias retiraria, sim, o direito de receber a aposentadoria por idade na qualidade de segurado especial, podendo, por outro lado, receber a aposentadoria por idade na regra geral (65 anos, se homem, e 60 se mulher, com o mínimo de 180 contribuições mensais).
      Tem que ser verificado se essa interrupção na atividade de segurado especial é constante, pois na análise de cada caso concreto será possível verificar se de fato houve ou não a perca da qualidade.
      Espero ter ajudado.
      Agradeço a visita.

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  2. Muito obrigada pelo esclarecimento, foi de grande valia.

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