O estudo da retórica e da argumentação jurídica é imprescindível ao profissional do Direito. Desde a Grécia antiga, os sofistas valiam-se dessa técnica para persuadir, para fazer prevalecer o seu ponto de vista. Dentro do estudo dessa técnica, encontramos as falácias, que são argumentos falsos, que intencionam enganar ou levar o interlocutor a um caminho errado.
Segue, abaixo, um texto divertido de M. Sulman sobre a falácia.
M. Sulman
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista,
perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro poderoso como um
dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E
tinha - imaginem só - dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto
tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na
universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma
porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional.
Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a
mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que
apareça, entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para
mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal
expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato:
apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o
médico.
- Couro preto - balbuciou ele.
- Couro preto?
- disse eu, interrompendo a minha corrida.
- Quero uma jaqueta de couro preto - disse.
Percebi que o seu problema não era físico, mas
mental.
- Por que você quer uma jaqueta de couro preto?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, socando a
cabeça - Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um
idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso
comprar uma jaqueta de couro preto.
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão
mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?
- Todas as pessoas importantes da universidade
estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não
freqüentado pela pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado
para o outro do quarto.
- Preciso conseguir uma jaqueta de couro preto -
disse, exaltado - Preciso mesmo.
- Por que, Pety?
Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são desconfortáveis.
Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são ...
- Você não compreende - interrompeu ele com
impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não - respondi, sinceramente.
- Pois eu sim - declarou ele - daria tudo para
ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou
a funcionar a todo vapor.
- Tudo? -
perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou ele, em tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia
onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu pai usara um nos seus tempos de
estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da casa. E, também por
acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos
ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua namorada, Polly Spy.
Eu há muito desejava Polly Spy. Apresso-me a
esclarecer que o meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida,
despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração.
Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de direito. Dali a
algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância
que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de
sucesso, segundo as minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres
bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia
perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram
clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o
que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa quero dizer
cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a naturalidade no andar e a
elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. Á mesa, suas
maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a
especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada,
molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para
o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha tutela, haveria de tornar-se
brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer
uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente
ficar bonita.
- Petey - perguntei - você ama Polly Spy?
- Eu acho que ela é interessante - respondeu -
mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de
arranjo formal com ela? Quero dizer,
vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente. Mas saímos os dois
com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem
que ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo
está livre, é isso?
- Acho que sim. Aonde você quer chegar?
- Nada, ainda - respondi com inocência, tirando
minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim de semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Petey, apegando-se com força ao
meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me
emprestar para comprar uma jaqueta de couro preto?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi,
piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse a Petey, ao voltar na segunda
feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que
meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em 1955.
- Santo Pai - exclamou Petey com reverência.
Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.
- Santo Pai - repetiu, umas quinze ou vinte
vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim - gritou ele, apertando a jaqueta contra o
peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar precavido. - O que quer em troca?
- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando
palavras.
- Polly?
- sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou a jaqueta pra longe.
- Nunca - declarou resoluto.
Dei de ombros.
- Tudo bem. Se você não quer andar na moda, o
problema é seu.
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro,
mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro
olhava para a jaqueta com a expressão de uma criança desamparada diante da
vitrine de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes,
altivo. Depois voltava a olhar para a jaqueta. Com uma expressão ainda maior de
desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua
cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente,
não se virou mais: ficou olhando para a jaqueta com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly
- balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu
pra ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco.
Só isso.
- Experimente a jaqueta - disse eu.
Ele obedeceu. A jaqueta ficou bem larga, passando
da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal vestido da década de cinqüenta.
- Serve perfeitamente - disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a
mão.
- Negócio feito?
Ele engoliu a seco.
- Feito - disse, e apertou a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite
seguinte.
O Primeiro programa teria o caráter de pesquisa
preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua
mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar interessante! - disse ela,
quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme interessante! - disse ela,
quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, que noite interessante - disse ela, ao
nos despedirmos.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu
subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça
era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de
tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a
princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos
seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava
uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe
um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de direito, eu freqüentava na
ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando fui buscá-la para o
nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o parque conversar.
- Ah, que interessante! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria
difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da
universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela me olhou cheia de
expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois
sentenciou:
- Interessante!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a
ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber
identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Interessante! - exclamou ela, batendo palmas de
alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto
Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com
animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um
argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício
é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly,
fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o
corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é
uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada.
Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm
ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a
generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a
maioria das pessoas. Do contrário está-se cometendo um Dicto Simpliciter.
Você compreende?
- Não - confessou ela. - Mas isso é interessante.
Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga da
minha camisa - disse eu e, quando ela parou, continuei:
- Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização
apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar
francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que
ninguém na universidade sabe falar francês.
- É mesmo?
- espantou-se Polly. - Ninguém?
Contive a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita
apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até
melhor do que dançar.
- Esforcei-me por conter a onda de desespero que
ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente
nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não
levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim -
exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez
que ela vai junto a um piquenique...
- Polly - interrompi, com energia - é uma
falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a
chuva. Você estará incorrendo em
Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso - prometeu ela,
constrangida. - Você está bravo comigo?
- Não Polly - suspirei. - Não estou bravo.
- Então conte outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as premissas
contraditórias.
- Vamos - exclamou ela alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aí vai um exemplo de premissas
contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada
que ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu ela imediatamente.
- Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a
pedra.
- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então eu
acho que ele não pode fazer a pedra.
- Mas ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou a cabeça linda e vazia.
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um
argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força
irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias interessantes -
disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor parar por aqui. Levarei você em
casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã.
Deixei-a no dormitório das moças, onde ela me
assegurou que a noitada fora realmente interessante, e voltei desanimadamente
para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a jaqueta de couro
encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo e dizer que ele
podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava condenado ao
fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que
não perder outra? Quem sabe se em
alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly,
algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda
conseguisse abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais
animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia desta noite se chama ad
misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei - Um homem vai pedir
emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde
que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças
não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem
camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas
de Polly.
- Isso é horrível, horrível! - soluçou.
- É horrível - concordei - mas não é um
argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas
qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a
falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar
enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom da voz -
discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos
estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam
as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam
seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam
na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a
seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela entusiasmada - esta é a
idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly - disse eu com impaciência - o argumento
é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo
teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são
completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
- Continuo achando a idéia interessante - disse
Polly.
- Santo Cristo! - murmurei, com impaciência.
- A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao
fato.
- Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.
- Preste atenção: se Madame Curie não deixasse,
por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda,
nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo a
cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei
louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns
minutos - disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma
falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez
outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de
uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais
filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há
um limite para o que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada de envenenar o
poço.
- Que engraçadinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiro
se levanta e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível
acreditar numa só palavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que
está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa,
concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que vira -
surgiu nos seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação - Não é
justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou
as mãos do adversário antes da luta começar...
- Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só
requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo
o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído da
mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma
cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até
ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era
como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de
quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui
recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o
sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas
valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar.
Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está
apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões.
Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor por
ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão amara a mulher perfeita que
moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no
nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar as nossas relações, de
acadêmicas para românticas.
- Polly, disse eu, na próxima vez que nos
sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela, desapontada.
- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um
sorriso - hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente
bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
- Generalização apressada - exclamou ela,
alegremente.
- Perdão - disse eu.
- Generalização apressada - repetiu ela. -
Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco
encontros?
Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável
aprendera bem as suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha
tolerante na sua mão - cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso
comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia - disse Polly prontamente
- eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. A criança
adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais. Resolvi mudar de
tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e
convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras
adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim,
é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida,
diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido.
Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma
de olhos vazios.
Pronto, pensei; está liquidado o assunto.
- Ad misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era
Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente
contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer
preço.
- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não
há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a
cabeça com vigor.
- E quem foi que ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma
coisa, não é mesmo, minha querida? Se
não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela
sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve
levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito
bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo
o dedo na minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando
como um touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou - respondeu ela.
- Por que não?
- exigi.
- Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows
que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela
infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a
minha mão!
- Aquele rato! - gritei, chutando a grama. - Você
não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
- Envenenar o poço - disse Polly - E pare
de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de
vontade, modulei a minha voz.
- Muito bem - disse - você é uma lógica. Vamos
olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um
intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um
maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia
seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso sim - declarou Polly - Ele tem uma
jaqueta de couro preto.
( in
Sulman, M. (1973): As calcinhas cor-de-rosas do Capitão,
Porto Alegre: Ed. Globo)
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